40 ANOS INEM | “Medalha de Ouro”, de José Luís Peixoto
José Luís Peixoto escreveu, em 2008, a crónica “Medalha de Ouro”, dedicada aos profissionais do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM). Hoje recordamos o testemunho de um dos mais destacados autores da literatura portuguesa contemporânea, após acompanhar o trabalho desenvolvido por várias equipas do INEM.
(Há́ esmagamento dos dedos? Acalme-se, minha senhora. Há esmagamento dos dedos? Mas há amputação dos mesmos?) No dia 21 de Agosto de 2008, o atleta Nelson Évora estava em Pequim, no Estádio Ninho de Pássaro, e eu estava em Lisboa, na Estefânia. E, no entanto, eu vi a maneira como, antes de saltar, levantou os braços e bateu palmas, ritmando todos os aplausos do estádio, exatamente como se esses aplausos, por sua vez, ritmassem todos os corações. (E ela está consciente? Aparenta estar alcoolizada? Sabe se a autoridade já chegou ao local?) Vi, mas não ouvi. O som está desligado nos ecrãs de televisão que existem no Centro de Orientação de Doentes Urgentes, no INEM. É uma divisão grande com secretárias, pessoas sentadas à frente de computadores e telefones que tocam, onde se acende uma luz vermelha. (Emergência médica, boa tarde.) O atleta Nelson Évora saltou nos segundos exatos em que o Tiago, a meu lado, não tinha nenhuma chamada. Antes, em conversas breves, sempre interrompidas, concluímos que conheço os primos dele em Tomar. 17 metros e 67 centímetros e, logo depois, tocou o telefone. Longe de Pequim, na margem sul do Tejo, em casa, uma senhora, que tinha tido um aborto espontâneo, acabara de assistir à expulsão do feto e tinha uma hemorragia que não parava. Nos meus auscultadores ouvi-a dizer que o feto estava sem batimentos cardíacos desde terça-feira. O dia 21 de Agosto de 2008 foi uma quinta-feira.
Triplo salto. Em câmara lenta, parece que nunca vai cair. Nas fotografias, nunca vai cair. Em direto, é demasiado rápido. A corrida numa pista estreita, marcada no chão, o pé que não pode ultrapassar o risco, o primeiro salto, o segundo salto e o terceiro, ai, ai, estica-se todo e cai na areia. Talvez o triplo salto seja uma metáfora da vida. Quando se presta atenção, quase tudo pode ser uma metáfora da vida. (Mas está espetada no braço? E qual o tamanho da lâmina? Sim, mais ou menos.) E a tarde aproxima-se de terminar. Na garagem, o Fernando mostra-me e explica-me tudo o que vai numa ambulância, arrumado em gavetas e malas. A grande maioria dos objetos existem em tamanho adulto e infantil. E, de repente, sempre de repente, vamos embora. As pessoas que caminham nos passeios param-se a olhar para a sirene. À frente, os carros desarrumam-se na estrada. A Xana sabe qual é o número da porta. Sobem e vou atrás deles. Está uma senhora caída nas escadas. Fala, mas não abre os olhos. Bateu com a cabeça. Enquanto a colocam no plano duro e a imobilizam, eu e os vizinhos continuamos de pé, a olhar. Não sabemos fazer nada. Uma vizinha diz que o problema é a água de regar as plantas. Os degraus ficam molhados e as pessoas escorregam. Os degraus são de mármore. No caminho para o Hospital de S. José, a Xana faz festas com as pontas dos dedos nos cabelos da senhora, fala para ela. (Emergência médica, boa-noite.) Quando a noite chegou à garagem das ambulâncias, podia-se respirar. Afinal, era Agosto. Quase no centro e, no entanto, a cidade parecia distante. Em Pequim, com as diferenças horárias, era tempo de descansar. Em Lisboa, meia hora depois, a ambulância passava entre as esplanadas das Portas de Santo Antão, as pessoas que caminhavam na rua afastavam-se, os seus rostos eram iluminados pelo azul intermitente da sirene.
Na manhã seguinte, VMER significava viatura médica de emergência e reanimação. Estava estacionada ao lado da Avenida de Roma. O desfibrilhador é um aparelho que impressiona. É uma espécie de arma ao contrário. Enquanto que uma serve para matar, o outro serve para ressuscitar. Talvez por isso, por ser bastante mais fácil matar do que ressuscitar, um desfibrilhador é um aparelho que impressiona muito mais do que uma arma. Foi o doutor Álvaro que mo mostrou antes de almoçarmos. O doutor Álvaro é do Sporting. Não cheguei a dizer-lhe que sou do Benfica. Melhor assim. Durante o almoço, assistimos à cerimónia da entrega da medalha ao atleta Nelson Évora. Enquanto soou o hino, não saíram cafés. Depois, a VMER, conduzida pelo enfermeiro Luís, passa entre os carros como um tiro. Naquele início de tarde, demorou minutos até chegar a uma senhora que tinha tomado 80 comprimidos na véspera e que tinha acabado de ser encontrada.
Acidente/Trauma/Agressão. Agora, eles estão lá, estão sempre lá. O Tiago, o Fernando, a Xana, o doutor Álvaro, o enfermeiro Luís e muitos outros que também têm um nome. E, sim, a medalha de ouro é merecida.
José Luís Peixoto
Setembro 2008
